Estelas e estrelas - uma incursão na poesia de Décio Pignatari
      Donaldo Schüler
      http://www.schulers.com/donaldo/estelas.htm
      Copyright,1997

      Como escrever sobre Décio Pignatari, se ao fazê-lo pratico ato de usurpação? Submeto imagens, ritmos, sons aos grilhões da linguagem lógico- discursiva. O que tinha forma, cor, movimento cai na inércia do discurso linear. Como, entretanto, congregar códigos fora da operacionalidade do código central? É verdade, o futebol interessa como guerra, como dança. Findo o espetáculo, contudo, enquanto não verbalizar o que vi, serei infeliz. Carrego milênios de frasealogia ocidental. O discurso lógico-discursivo, a estrondosa descoberta helênica...não quero disfazer-me dele. O que digo do futebol vale para todas as artes. O código ligüístico se contamina das qualidades dos códigos que contacta. Isso deve consolar os adversários do período lógico. Até no discuros linear, há arquitetura, cinema, canto e dança. Penso nos metafísicos: Platão, Agostinho, Heidegger, metafísico apesar de combater a metafísica. Os sofistas conheciam as virtudes do discurso por isso criaram a retórica e a poética. O discurso argumentativo não foi democrático desde a origem? O grupo dos que manipulavam o canto era bem menor. Está em Hesíodo. As palavras das musas eram mel na boca de reis e de alguns cantores privilegiados que exaltavam a ação de deuses e de reis. Enquanto profissionais especializados cantavam e dançavam, o povo escutava silenciosamente. O canto não era da comunidade, era para a comunidade. O discurso lógico-discursivo veio para democratizar. Poética foi a autoritária monarquia dos faraós. O dialético, o metafísico Platão, inimigo dos poetas, foi o primeiro escritor popular. E continua a sê-lo, pelo menos tanto quanto Homero.Os admiradores de Homero falam a linguagem de Platão. A pintura pratica a linguagem da pintura, a música pratica a linguagem da música, só o discurso verbal traduz a lingua de todos. O rio heracliteano não é lógico por acaso. Apesar da montanha de livros que já se escreveram sobre o teatro inglês, Shakespeare continua sendo Shakespeare. E Shaskespeare não seria Shakespeare sem os estudos que o mantêm vivo. Proponho trégua na guerra entre prosa e poesia. Ela já dura dois mil e quinhentos anos. Minha contagem começa em Heráclito, época em que a assembléia popular e o tribunal se robustecem. Quero falar com Décio, quero entendê-lo na linguagem em que todos somos iguais. Espero lucrar com o exercício recursos que não tenho. Já há tempo economizo conjunções, lição que aprendi de outro vanguardista, o Graciliano de Vidas secas. Vamos às estelas. Comecemos pela última, a Estela cubana.
      Entendendo que o epos, a linguagem da comunidade, se encontra nos meios de comunicação de massa, Décio Pignatari recorre a técnicas de jornal ao elaborar Estela cubana. O poema se divide em três títulos (manchetes) entrecortados por duas colunas de subtítulos (três para cada título), seguidos por outras duas colunas de textos.
      Examinemos os títulos:
      LUP/US STAB/AT SUPER
      LUC/ROS NA BA/SE DE AÇÚC
      LAMB/USA ÁGUA DE OUT/OUBRO*
      A frase latina que abre o poemas (lupus stabat super) não causava surpresa em 1962. A maioria dos leitores ainda se lembravam da fábula de Fedro, “O lobo e o cordeiro”, lida em latim no segundo grau. Chama atenção a posição das palavras, alterada por Décio. Lê-se no texto original:

      Ad rivum eundem lupus et agnus venerant
      siti compulsi: superior stabat lupus

      Recordemos a fábula. Compelidos pela sede, o lobo e o cordeiro se dirigiram ao rio. O lobo encontrava-se na parte superior. Muito abaixo dele bebia o cordeiro. O ladrão, incitado por fome insaciável, começou a querelar, perguntando porque o cordeiro lhe turvara a água. O lanígero observou assustado que a alegação da fera era infundada em virtude da posição de ambos. Repelido pela verdade, o lobo acrescentou que o cordeiro tinha falado mal dele seis meses atrás. O cordeiro respondeu que isso ele não poderia ter feito porque ainda não tinha seis meses. Vencido pela segunda vez, o lobo argumentou que o pai do cordeiro o insultara e dilacerou o indefeso. Vem a moral: Há homens que oprimem inocentes apoiados em falsos motivos.
      Tensas eram as relações entre os Estados Unidos e a União Soviética no início dos anos 60. Cuba, em conflito com o centro do capitalismo ocidental , buscou a proteção dos países comunistas. Os americanos, irritados e temerosos, impediram que os soviéticos a transformassem em base militar. O Terceiro Mundo, a braços com sérios problemas sociais e descontente com o imperialismo da grande potência do Norte, solidarizaram-se com os cubanos. Nesse clima, a eufórica preocupação pela forma que se instalara no Brasil desde a vitória sobre Hitler e seus aliados já não entusiasmava. Os próprios concretistas que, fundados em Maiakovski, proclamavam que sem forma revolucionária não havia literatura revolucionária, abrandaram a ênfase formal. Numa conferência proferida em 1961, Décio Pignatari anunciou o salto conteudístico-participante. O poema Estela cubana, publicado um ano depois, foi escrito dentro da nova tendência. O lobo da fábula residia no hemisfério setentrional. Nisso havia consenso.
      Décio Pignatari pôs o conhecido sintagma do poeta latino em manchete, invertendo a ordem das palavras e cortando a desinência de superior. Até aí a comunicação se realizava a contento. O poeta afirmava o óbvio. Até a geografia favorecia a aproximação da situação política à fábula latina. No interesse da criação poética, Pignatari inverte a posição das palavras e corta a desinência de superior. Prossegue, efetuando duas tmeses na frase latina: LUP/US STAB/ AT SUPER. O recurso nos arrasta da língua latina para a língua inglesa. Temendo que o leitor não esteja suficientemente escolado para perceber a transposição, Pignatari orienta a leitura com notas apensas ao poema. As notas não dizem tudo, mas ajudam muito. Enfim, o poema nos obriga a reaprender a ler. Desde pequenos fomos habituados a identificar poesia e arte do verso. Como reconhecer poesia numa composição que abole o verso? À medida que lemos, o poeta nos instrui. Parte da instrução recebida vale só para este momento, visto que de poema a poema a técnica muda. Décio nos lembra que o poema foi escrito dentro da tradição de Mallarmé e Joyce. Isso ajuda. Mesmo assim, as inovações de Pignatari requerem que se readaptem os que os já freqüentaram os autores citados.
      O poeta ensina que LUP deve ser reconhecido como transcrição fonética de loop. Vamos ao dicionário. Somos informados de que loop significa enquanto substantivo: laçada, nó, laço como o que se forma ao se cruzarem as linhas, por exemplo, da letra l manuscrita. Na qualidade de verbo, loop quer dizer segurar, prender, enlaçar. Entendemos que a personagem que veste a pele do lobo enlaça, prende a vítima. Loop é empregado ainda no sentido de acrobacia aérea. Se levamos em conta a importância que o aviação desempenha nas incursões bélicas, não podemos desprezar essa acepção. Ressemantizado, LUP nos leva a um leque de acepções que não vai ao infinito por se manter no campo semântico que já começou a se estabelecer. Não nos custa esforço reconhecer na desinência US a sigla dos Estados Unidos, que repercute verticalmente em rOS , USA, na forma de rima.
      STAB, que surge do seccionamento de STAB/AT nos devolve ao dicionário. STAB é golpe desfechado com arma pontuda, punhalada, facada; ferida provocada por perfuração; injúria, ofensa. Amplia-se o espetro das violências praticadas pelo sujeito, USA. Vêm-nos à mente a delinqüência juvenil que tinge de sangue as ruas das megalópoles americanas. As imagens violentas difundidas pelos meios de comunicação agravam a personalidade violenta do agressor.
      Alcançamos o fim da manchete latina anglicizada, AT SUPER. Décio manda acrescentar um P e chegamos à expressão at supper, à ceia. A denúncia é séria: atos sanguinários alimentam o agressor.
      Amparado por cortes, Décio cria um comentário inglês para a frase latina, interpretando para os tempos modernos a fábula de Fedro. Alternando os códigos, lemos latim e inglês na mesma seqüência de palavras. O recurso, extremamente econômico e riquíssimo em informação, recompensa o esforço de compreensão. As associações nos levam longe. Latim e inglês convergem porque ambas foram línguas de dominadores. De Roma aos tempos modernos as pequenas nações se viram sempre devoradas pelas grandes potências por razões artificiosamente arquitetadas.
      A segunda manchete: LUC/ROS NA BA/SE DE AÇÚC(AR) pretende ser tradução jocosa da frase latina. Traduções que tais circulavam em abundância tempos atrás. Além das indicadas pelo poeta, lembramos outra: “O leão quis zurrar e desanimou”, tradução de “le lion est le roi des animeaux” ( o leão é o rei dos animais). A fragmentação nos leva a expansões semânticas similares às da frase anterior. Poderíamos entender LUC, transcrição fonética de look, como advertência para assunto sério: Veja! Este segundo nível é o do cordeiro. Aqui entra Cuba cuja riqueza, o açúcar, é controlada por capital estadunidense antes da revolução. Cuba é a nação injuriada, devorada. BA(A), inversão de AB no título anterior, é balido. Em roS NA Ba, substitua-se B por P e temos SNAP (morder, abocanhar). Alterando a combinação das sílabas, temos ROS NA, atitude agressiva do lobo que mostra os dentes. Em SE DE AÇÚC(AR), DE faz papel de preposição e de segunda sílaba de SEDE. A cada percurso de leitura, estalam novas significações
      O terceiro nível é dominado pela manchete: LAMB/USA ÁGUA DE OUT/UBRO* Como este é o nível da revolução, OUT/UBRO alude ao mês em que o povo rebelado tomou o poder em 1789 na França convulsionada. Ao contrário do que acontece na fábula de Fedro, o cordeiro (LAMB) turva a água do lobo (o rei) e o dilacera. Os actantes são os mesmos, os atores são outros, Cuba e USA. Sem a ajuda do poeta, teríamos dificuldade em decifrar o asterisco que encerra a frase, sinal complexo que representa a estrela cubana, o satélite russo, um expoente matemático. UBRO, em cujo horizonte gira o asterisco, deve ser intendido como um ruído, rima com urro. Nesse contexto, nada nos impede de entender OUT (fora) como grito popular contra os opressores. Os três níveis formam um haicai, caro aos concretistas.
      Fragmentadas as manchetes nos três níveis, Pignatari preenche o espaço com retângulos verbais dispostos em sentido horizontal e vertical. O primeiro conjunto de retângulos semelha, em tipos menores, subtítulos das manchetes
      A LUP estão subordinados: 1) OSSIDENTALM/ENTE, sobreposição por verbomontagem de ocidental, osso, dente. O lobo ocidental reduz o cordeiro triturado a ossos. 2) MERCADAM/ENTE.. O mercado americano oprime. 3) INOMINOSAM/ENTE. A palavra é formada de inominável e ominosa (agourento, nefasto, detestável) e carateriza a ação do lobo.
      A LUC se subordina: 1) DOLOROSAM/ENTE, 2) GASTRICAM/ENTE, 3) FIDEDIGNAM/ENTE. Que o cordeiro tenha um doloroso destino gástrico é óbvio. Só como ironia podemos aceitar que a devoração seja fidedigna, a não ser que se esconda aí o nome de Fidel.
      LAMB. A revolta se dá : 1) AFOITAM/ENTE, 2) KAPUTALISTICAM/ENTE. Naqueles tempos se declarava, nos países oprimidos, morto (kaputt) o capitalismo ocidental. 3) SISISISISIM/ENTE é um mistério. Afirmação enfática do sim como no monólogo joyceano de Molly Bloom? Neste caso, teríamos a afirmação da vida contra as forças letais.
      No bloco B, os subtítulos COLOSSO, INDIVIDUAL, NOMEADO, inseridos no nível do lobo, caraterizam o agressor como um individualista que se quer reconhecido como colossal. Os subtítulos DOCE, INDIVIDUAL, INDIGNADO definem, no nível médio, o agredido como um verbalmente indignado que exige o que é seu, o produto da cana de açúcar. É oportuno lembrar os eloqüentes discursos de Castro contra as medidas militares e econômicas de Kennedy. O terceiro nível incorpora a rebelião camponesa da Rússia (COM FOICE), o que é SINTOMÁTICO contra o CAPITAL.
      O bloco C, constituído de textos, semelha colunas de jornal inseridos após os subtítulos nos espaços entre as manchetes fragmentadas. É como se lêssemos primeiro as manchetes depois, os subtítulos e por fim, os textos. À maneira da leitura de periódicos, a seqüência não é obrigatoriamente esta. Já temos um grau de informação satisfatório se nos satisfazemos com a leitura de títulos e subtítulos. Quem lê tudo?
      Em virtude da deformação das palavras, da montagem, dos cortes, a leitura dos textos é extremamente exigente. O enquadramento dos textos em cada um dos três níveis, não impede a expansão para áreas distantes e variadas. Pula-se de segmento em segmento a assunto diverso sem desenvolver nenhum. Queremos crer que esse seja o fulcro do espaço imaginário. Aqui o leitor, ante temas apenas sugeridos, é induzido a combinações inventivas.
      Iniciemos a leitura pelas primeiras duas linhas do primeiro texto: sses brout obceios/ fazem abanas. Avançamos por sugestões. Consideramos sses um pronome demonstrativo truncado que, reconstituído, dá esses. Sendo assim, devemos considerar brout pedaço de um substantivo masculino plural: broutos. Como não encontramos a palavra no dicionário, devemos supor verbomontagem. A tentativa de sobrepor “brotos” e “brutos” não nos levou a conclusão convincente. Como o o aparece freqüentemente ditongado (mouços, boua, toudos), colocamos broutos na mesma categoria. Bourocrassia, palavra que resulta de burocracia, ouro e crasso, conota broutos e as outras palavras formadas pelo mesmo molde. O ouro do lobo assegura a posse dos brotos. A palavra obceios vem da montagem de obscenos e seios. A palavra abanas tem “abano” por matriz. Se nosso processo de leitura é viável, chegamos a essa frase hipotética: “Esses brotos (moças), conquistadas a ouro, de seios obscenos, fazem abanos”. O sentido é compatível com a voracidade erotizada do lobo.
      Procedemos a um trabalho de escafandrista para detectar algumas das matrizes prosaicas das criações de Décio Pignatari, no primeiro nível. Sem preocupação de acompanhar todos os percursos de leitura, lemos: moram no logradouro Liberdade, herdade sem burocracia, vital é lógica do gozo, não adianta cair de borco, ama mulher impossível, melhor impossível, boca cheia, não desabocanha nem deixa rolar, loco sem lucros, herança não vendo, boa doutrina ouso dar a moços e moças, ouça meu bem, todos permanecer virgens até os vinte. Neste levantamento a temática se concentra em economia e sexo. Vida artística e política ausentam-se dos interesses do lobo. Em seu código ético, libertinagem e recomendações de abstinência se misturam.
      No segundo nível, a temática do texto se concentra nas angústias do oprimido: de mãos atadas, respira pelos olhos, a tortura, por ansiar tudo, naco da polpa verde nem comer nem cuspir, todo ar que lhe falta.
      Nos textos do terceiro nível, dificilmente chegaríamos de esputa a sputnik. Ouvir em voz o toque vostok (oriente) é mais fácil.
      A leitura não estaria completa se nos contentássemos com o salto participante, reduzindo o sentido do poema a um panfletarismo de interesse passageiro. O poeta escapa pelo asterisco a regiões bem mais arejadas. O asterisco, o pequeno astro, lembra a estrela da revolução cubana, mas evoca também acusticamente, via latim (stella - estrela), a Estela cubana. Pelo som stella e estela se aproximam.
      O poema gira em torno da coluna formada pelas sobreposições da desinência ENTE, destacada por tmese desde a primeira frase. A inversão de superior stabat lupus, aponta o sintagma lido nos dois sentidos, criando um movimento circular que lembra os giros do carrossel, presente na abertura da atividade poética de Décio Pignatari. Numa das epígrafes, do livro O carrossel, a de Steinbeck, Juan dirige-se a um escrivão público, encarregado de prestar serviços a quem não sabe ler nem escrever, com o pedido de redigir uma carta a sua gente do interior comunicando-lhes que decidira ficar na cidade porque vira maravilha comparável às estrelas, um carrossel. Ponha-se Décio em lugar de Juan, e temos a metáfora da biografia literária do poeta. Viu estrelas que giram nos espaços infinitos sem excluir os satélites artificiais. Porque não sabe ler, seu olhar de errata pervade mistérios, “deslinda as feias fauces dos grifos”. Porque não sabe escrever, rompe-se a estrutura compacta do período subordinado, deixando o poeta sem armas ante as ameaças da página em branco. Pagou com a vida a escolha do carrossel. Tendo escolhido os giros, as incertezas, a aventura urbana, deixa na província os poetas com “as puras tágides de eventual marasmo”. Tudo foge, se alonga, se decompõe em massa informe, sem as mentiras da realidade. Busca, girando, mundos em gestação para que os bardos ouçam -alusão a Bilac- estrelas do Ex-Silêncio. A infância lhe sorri em nebulosas e estrelas. Gira-girando vê Stela de tranças e de vestido negros.
      Identificamos ENTE como eixo do carrossel Stela cubana. Talvez já esteja em “Lobisomem”, um dos poemas de O carrossel. Lá o poeta perde a pele para um iroquês que foge com ela. Transido de dor, o poeta pede sem êxito, a pele de uma mãe e de um mendigo. É mais feliz ao implorar a pele de um cachorro que, desvestindo-se da própria nudez, implora a epiderme da lua. Protegido pela pele do cachorro, observa o poeta: “Não sou cão, não sou gente - sou Eu.” De lá até Estela cubana a perda se acentuou. Foi-se o subjetivismo dos anos 50, foi se a dor, foi se a consciência do EU, cartesianamente eixo do mundo. Em lugar do eu, instala-se um ENTE heideggeriano, clareira do ser, que, despido de tudo, vazio até à medula dos ossos, fala o epos da comunidade, a linguagem de jornal. O centro vazio, o vazio do homem, trunca o discurso, mostra o rosto em todas as fendas, em todos os buracos. Resta uma inteligência estrutural, matemática que vê o mundo com olhos cubistas.
      A leitura da obra de Décio Pignatari levanta a suspeita de que no poeta se realiza a montagem do lobo e do cordeiro. Invocamos “O lobisomem” em apoio à natureza canina do poeta. Há indícios dela também em “Carrossel”, poema em que uma voz recomenda que o Lobo Mau esconda as caraterísticas de fera para que tenha direitos de cidade. Ora, o poeta é fera rebelada. “Hidrofobia em Canárias” transforma a suspeita em certeza. Sem meias palavras, o poeta declara “sou raro e lobo”. O poema conclui com declarações explícitas: “cave canem, mulier - décius é o cão//pagnatari - o canil.” Sendo assim, o cão que os broutos de Estela cubana devem temer é o poeta que, agredindo com “caninos de ouro”, explica a chuva de ouro sobre os dois textos do primeiro nível, expressa em pingos de ou.
      Num poema obscuro “Tout est tout dire” alude-se ao balido de um cordeiro na vizinhanças de Ulisses, “Ninguém Polümetis”. Despido até da pele, não espanta que o poeta se identifique com o astucioso navegador que ameaçado de morte se disse Ninguém ao gigante que tinha apetite de sua carne. Ovelhas Ulisses sacrifica para atingir o saber dos que habitam no reino dos mortos. Em “Bufoneria Brasiliensis” o poeta ataca os vates que extra-muro procriam e parem em “troqueu gregário”. Montando peças para resolver um enigma, chegamos ao sacrifício do poeta-ovelha gregário para que se tenha acesso ao saber que sem a morte dele não se atinge. Com a perda da pele, Décio despe-se da poesia gregária, passando a girar nos amplos espaços da invenção. Em Estela cubana, o lobo do primeiro nível (Ninguém Polümetis) mata a ovelha do segundo nível, para rebelar-se contra a opressão no terceiro nível, asterisco a girar em carrossel universal. Se devemos associar, como quer Pignatari, UBRO com urro, não devemos esquecer “meus urros”, os urros da rebeldia poética de “Altar-menor”. O poeta avança COM FOICE como Crono para decepar os genitais de Urano, O Céu-estrelado, seu pai opressivo. Ele o faz para que possa viverse como se lê no último texto. O verbete nique é com certeza nike (vitória), palavra que, divinizada pelos gregos, abre estelarmente caminho ao estrelado. Estrelado é o giro das galáxias que se espalham pela espaço sem centro, o espaço inventivo da poesia renovada. Cuba é o asterisco que exorbita para provocar outras exorbitâncias. O lobo, na queda, passa de sol a asterisco. Um mundo só de asteriscos viverá para inventar inUSitAdas constelações.
      Stèle pour vivre no.3 é o outro título de Estela cubana. As outras Stèles estão no livro Vértebra de 1956. Na estela de no.1 lêem-se palavras de um eu que perdeu a fala, um eu morto que busca recuperar a vida, reautoviver-me. O poema se reporta a insccrições tumulares antigas que redigidas em primeira pessoa dão fala a quem já não move os lábios. Cada vez que um passante lê a lápide -a leitura se fazia em voz alta- o morto reingressa no grêmio dos falantes. O texto mutilado incorpora a ação destruidora do tempo. Cabe a quem lê devolver vida ao morto e ao texto. Esta é a tarefa que os textos mutilados de Pignatari impõem ao leitor. A leitura hostiliza a morte. Na leitura, o texto vive. A leitura corresponde ao ritual mágico de Ulisses. Em vez do sangue das ovelhas, o leitor oferece o sangue de suas próprias veias para que, sob o efeito do líquido vital, o morto viva. O eu textual, morto, carece do sangue do leitor para reviver. A Stèle pour vivre no.3 ecoa no primeiro dos textos do nível médio de Estela cubana. Aí o falante está de mãos atadas. Como já não respira pelas narinas, só lhe resta respirar pelos olhos, que na leitura lhe devolvem alento. O mergulho é o na morte para recuperar a vida. No sangue da ovelha - estamos no nível do cordeiro- cessa a tortura de quem a letargia atou as mãos. Sente-se aqui o perfume da planta que encerra a estela de no. 1.
      Em Stèle pour vivre no.2, a l/ingua morta, a língua do morto, a do poema reanimada na leitura, invoca Alexandre Magno (alex! alex!), conquistador da Ásia e da África, e bucéfalo, o seu mítico corcel. Alexandre é o que exorbita. Transgredindo limites que se queriam invioláveis, degrada as cidades gregas, pólos que se arvoravam -cada uma delas em conflito com as demais- em centros do universo, a asteriscos de uma constelação universal. Bucéfalo, a cavalgadura com à qual Alexandre se une sem mediação - Alexandre e bucéfalo fundem-se, confundem-se- bucéfalo, o construtor do mundo sem limites, bucéfalo é a poesia que o poeta busca domar, poesia buce-fálica, por ser fecunda. Lutando contra a morte, em buce-fálica os órgãos genitais masculino e feminino se conjugam.
      Ao concluir a leitura, giramos como asteriscos de galáxias descentradas. O esforço da leitura obsta reação admirativa. Saímos da tarefa como quem dobra o jornal. A sucessão de jornais não leva ao último capítulo. O jornal de amanhã nos trará títulos, subtítulos e textos truncados como o de hoje. Como o de hoje nos solicitará alguns minutos de atenção.

      Visite o livro Heráclito e seu (dis)curso

      Return to the Home Page