Fim de século: espanto, pânico, pane.
      Donaldo Schüler
      http://www.schulers.com/donaldo/fimsec.htm
      Copyright,1996

      O espanto está na origem da literatura porque está na origem do dizer. O espanto faz nascer os poemas cósmicos.
      Mário Quintana:

      A morte há de fitar com espanto
      os fios de vida que urdi cantando
      nas orlas negras do seu negro manto

      A morte vem do abismo que nos ameaça de dentro. Como vencer a morte? Com atos positivos que atestam a vida. A literatura alimenta-se da morte. A morte está no silêncio. No fim de uma frase, na pausa de uma vírgula está a morte. O que dizemos e o que fazemos são fios de vida urdidos nas orlas negras da morte.
      O espanto renova a estranheza do que é ameaçado pela letargia, redime da rigidez da inércia. A obra de arte, quando descoberta, espanta. Coloca-nos diante do excepcional. As coisas podem ser diferentes do que são, isso espanta. O espanto nos introduz em possibilidades inauditas| seja um quadro, um romance ou um poema.
      O pânico empreende caminho contrário ao espanto. Enquanto o espanto promove os fios de vida na orla do manto da morte, o pânico leva à fuga desordenada. Desorganiza o organizado. Dispersa exércitos. O pânico pactua com a morte. Nas palavras de Drummond, a bomba é uma flor de pânico que apavora os floricultores. O apocalipse. Temia-se o fim do mundo antes do fim do milênio. O temor do fim atravessa o século XX. Durante a primeira guerra mundial, A decadência do Ocidente. Spengler entendia que a cultura ocidental que tinha nascido na Grécia tinha chegado ao fim nos movimentos de vanguarda. Era o fim da civilização ocidental.
      Vivemos num sistema muito bem organizado. Um sistema que vem do racionalismo do século XVIII, origem da industrialização. O panóptico idealizado por Bentham. Uma torre donde se podem observar todos os prisioneiros sem que os detentos vejam quem os vigia. Não se sabe nem se há alguém na torre. A constante possibilidade de poder ser observado. Este poder aumentou enormemente. Somos observados dos satélites. Nossas conversas telefônicas podem ser registradas por órgãos de controle. Não sei se estou sendo vigiado, mas a possibilidade existe.
      A pane. Dürrenmatt. O sistema pode falhar. Um alto funcionário numa pequena aldeia. Longe de toda vigilância. Quem poderia supor que a pane se desse aí? Não só a pane do automóvel. A pane de todo o sistema. Ele é julgado. Trata-se de um jogo. Jogo de pessoas desocupadas. A morte insinua-se no sistema. Aqui a morte humaniza. Não o suicídio. O suicídio não afeta o sistema. O suicídio é incestuoso. Apressa-se a unidade que deve ser adiada pelo jogo. O suicida não joga. Sai covardemente no jogo. No jogo se perde ou se ganha o importante é o jogo. A continuação do jogo está no Quatrilho. Recolhem-se os fragmentos e se continua a jogar. O que não é admissível, sair do jogo. Quando se inventou o concreto, pensou-se que seria eterno. É de se ver como a água rompe superfícies lisas, ataca o ferro, derruba estruturas sólidas. A água, símbolo da morte e do renascimento.
      A arte provoca a pane sem causar mortes. Ela atrai porque ensina a fugir do controle. Arte é jogo. Jogo não se ensina. O jogador deve conhecer as regras do jogo. Todos podemos aprender as regras de qualquer jogo. Isso não nos torna jogadores, ainda que não nos faltem habilidades físicas. O que espanta no jogador hábil é a capacidade de fazer o que as regras não prevêem. As inovações podem ser aprendidas. Entram então na gramática. Todos podemos fazer sonetos e escrever romances. O que não se pode ensinar é como levar o receptor ao espanto. O artista ensina mesmo os melhores conhecedores. O artista não sofre pane. Ele provoca a pane sem causar a morte de ninguém. Provoca a pane jogando. A pane renova ao espanto. Passamos a refletir sobre o romance no momento em que o romance pode desaparecer.
      Ante a falha do sistema, temos que voltar a refletir sobre a sentença de Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”. Platão se opôs. Platão queria uma medida mais firme que o homem. Isso todos desejamos. Um mundo em que não é preciso escolher, porque todas as escolhas já foram feitas. A escolha sempre provoca dor porque acarreta perdas. Mulheres que evitaram a gravidez se arrependem pelo fato de não terem tido o privilégio da maternidade. Mas um mundo perfeito seria insuportável. Mundo perfeito é monótono porque elimina o jogo. Todas as medidas propostas, as platônicas e as demais falharam. Resta o homem, inseguro, fraco, passageiro, mortal. Em lugar de tirar conclusões melancólicas, vejamos o resultado positivo da fragilidade. Fernando Pessoa:

      O mar com limite é grego ou romano
      o mar sem limites é português.

      O vazio em nós, a morte em nós, abre caminhos infinitos.
      Não podemos prever o futuro, mas podemos planejar nossos atos. Se não somos governados pelo destino, somos governados por aquilo que fazemos. Não dispomos de máquinas para retornar ao passado, mas temos a memória, temos registros. E qual é a utilidade de retornar ao passado. Verificar os projetos. Corrigir projetos. A vida nos obriga a escolher. Não há escolha correta. Todas estão erradas. Porque quem escolhe, elege uma coisa em detrimento de outra. Todas estão corretas, parcialmente corretas, porque erro absoluto não existe. O mínimo que uma escolha errada pode oferecer é o conhecimento do próprio erro. Drummond / Ganhei, perdi meu dia. Importa rever projetos. Um dos projetos que temos que rever é o projeto da guerra.
      É o momento de refletirmos sobre a guerra. O século XX foi marcado por duas guerras mundiais. E diz-se que da terceira guerra mundial não haverá sobreviventes. Mas desde a última guerra, vivemos pequenas guerras em todos os continentes que no seu conjunto mataram milhões de pessoas. Numa época em que poderíamos ser felizes semeamos a guerra.
      A guerra é tão antiga como o homem. Eclodiu na primeira família. Guerra mortal. Um irmão matou o outro.
      Heráclito: “A guerra é o pai de todas as coisas”. Não podemos examinar todas as conseqüências da palavra de Heráclito. Sabemos, entretanto, que guerras foram exaltadas desde a Ilíada. O campo de batalha era o lugar em que esplendiam as qualidades do homem.
      Projetemos um mundo sem guerras. As grandes potências temem a proliferação das armas atômicas. E por que as grandes potências não destroem os seus arsenais? As grandes potências não estão protegidas de irracionalidade. Uma delas insiste em fazer experiências nucleares, outra empreende ataques completamente desnecessários.
      A loucura da guerra foi habilmente representada em Os sertões por Euclides da Cunha.
      A violência apresentada por Rubem Fonseca em Feliz ano novo já não se restringe a alguns centros urbanos. A violência se dissemina em todos os centros urbanos.
      Não há centros hegemônicos. Não há líderes carismáticos. Todos somos responsáveis.
      No século passado ainda se acreditava que a obra literária era produzida por personalidades geniais. O autor mantinha hegemonia sobre a obra. Hoje celebramos a morte do autor. Quem faz a literatura? Todos. Todos somos responsáveis pelos textos produzidos.
      Saímos da literatura plena para obras inconclusas. A literatura plena corresponde a épocas plenas, sem futuro. Os projetos nos orientam nas sombras do futuro. Se não estamos sujeitos à fatalidade soberana, somos responsáveis. A literatura nos ensina a inventar e inventamos.
      O mar sem limites não é português, é de todas as nações. O mar sem limites é nosso.


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