Um lance de nadas na épica de Haroldo Donaldo Schüler Copyright, 1998 http://www.schulers.com/donaldo/haroldo |
A epopéia seduz Haroldo de Campos como tradutor e como criador. Antes de abordar as criações, visitemos as traduções. Traduzir é trair? Essa é a opinião generalizada. A traição gera virtudes? Essa é a firme convicção de Haroldo de Campos. Afrontando as reservas contra a tradução, Haroldo pratica-a sistematicamente já há longos anos. Considerando traduzir transcriar, enfrenta só textos criativos. Raras vezes traduz obras inteiras. Seleciona o que lhe agrada, e lhe agrada o difícil. Depois de ter traduzido Pound, Joyce, Mallarmé, Maiakovski, Goethe, Heráclito, Dante, Homero, Octavio Paz, teatro Nô japonês, aventura-se ao texto hebraico da Bíblia. Os princípios e métodos de tradução do poeta vanguardista fizeram escola no Brasil. O que distingue tradução e criação? É difícil dizer. Todo texto dialoga com outros textos, seja traduzido ou original.
O tom épico de alguns trechos da Bíblia acende o interesse de Haroldo pela Escritura Sagrada como se vê em Bere'shith, livro que contém a tradução dos primeiros versículos do Gênesis e dos 41 versículos do capítulo 38 do Livro de Jó. O assunto de ambas as passagens é o mesmo: a criação do mundo. Além da elevação épica, a estranheza da língua atrai Haroldo. A epicidade emerge literalmente no quarto versículo do segundo capítulo do Gênesis. Na tradução do poeta, o versículo soa assim:
Esta a gesta do céufogoágua / e da terra
enquanto eram criados///
No dia / de os fazer / Ele-O Nome-Deus /
terra e céufogoágua
Nesta como em outras traduções, percebe-se a distância entre os poemas atribuídos a Homero e o Gênesis. O texto bíblico contrasta, na contenção, com a prolixidade homérica. Atento ao espetáculo do mundo, preocupado em criar cenas que sugerem visibilidade, Homero prepara o advento da escultura e do teatro. O mundo bíblico, preferentemente auditivo, concentra-se na voz, origem do universo e da promessa.
Haroldo de Campos chama atenção para a estranheza do hebraico. Sendo uma língua semítica, compreende-se que ofereça dificuldades bem maiores ao tradutor do que o grego que pertence, como a nossa, ao grupo das línguas índo-européias. O estranho proporciona-lhe o ensejo de traduções "fortes", origem de novos recursos para os cultores da língua portuguesa. Em lugar de "céu", tradução de shamáyim, Haroldo nos dá "fogoágua", ou, como aqui, "céufogoágua". Justifica o neologismo com a etimologia da palavra hebraica, composta de esh (fogo) e máyim (água). Esta é parte da justificativa. A outra, é o entrecruzamento textual. O tradutor lembra, em nota, as "metáforas cosmológicas" da física moderna, de acordo com as quais o universo teria nascido do fogo, numa explosão quente. Repete-se o comportamento já observado, a ênfase se desloca do texto para as significações que resultam da leitura. Detida atenção mereceu o "tetragrama Inefável" YHVH, que, vocalizado, dá "Javé". Haroldo de Campos recolhe as discussões eruditas sobre este nome divino no achado hermenêutico-crítico "Ele-O Nome-Deus". Tradução e discussão dessubstancializam o texto.
O termo toldoth, traduzido por "gesta", suscita a lembrança da epopéia grega. O tradutor lembra ainda as narrativas medievais designadas de gestas. A tradução amplia as ressonâncias multissignificativas do substantivo hebraico. Toldoth, nome feminino plural, significa nos textos bíblicos: gerações, famílias, raças, história, origem. Além das novas associações que "gesta" provoca, a escolha foi determinada também pela sonoridade: "Esta a gesta".
O Livro de Jó enfoca a epopéia da criação de outro ângulo. Jó, inconformado com a dor que o aflige, é interpelado por Deus com perguntas arrasadoras. Haroldo de Campos traduz o quarto versículo do capítulo em foco assim:
Onde estavas/
quando eu fundava a terra///
Declara-o //
se entendes o argumento