HERÁCLITO: O DISCURSO NOS DISCURSOS
Donaldo Schüler
http://www.schulers.com/donaldo/herac.htm
Copyright,1996
- 1.1 - Vigília e sono
- 1.2 - O com-um e o comum
- 1.3 - Tradução
- 1.4 - Aos surdos
- 1.5 - Comunidade
- 1.6 - Discurso excedente
- 1.7 - Esquivanças
- 1.8 - O indizível
- 1.9 - Imbecis
- 1.10 - O discurso autoritário
- 1.11 - O renome
- 1.12 - Tradução e tradição
1.1 - Vigília e sono
Heráclito, ao dizer que o oráculo de Delfos não declara nem oculta
mas significa, define, com certeza, o seu próprio discurso. Sentindo
a insuficiência do sistema lingüístico para desvendar o mistério do
mundo, desenvolveu uma linguagem ambígua, alusiva,
multissignificativa, apta a apanhar a complexidade da realidade
apenas entrevista, discurso que gera outros discursos em corrente
sem fim determinável. Traduzir Heráclito é entrar num jogo em que
as imagens se multiplicam, jogo de ondas, efêmeras, vivas. A
infidelidade necessária da tradução abre distâncias em que os
significados cambiantes se movem, cavando leitos imprevistos no
fluir universal. Entremos no jogo sem detê-lo, sem receio de
deslizes, mas com a firme determinação do lance adequado.
Embora seja este o discurso, sempre, os homens tardam, não só
antes de ouvi- lo, como logo que o ouviram; pois, mesmo que todas
as coisas aconteçam de acordo com este discurso, mostram-se
semelhantes a inexperientes ao experimentarem tais palavras e atos
que eu persigo segundo a natureza distinguindo cada coisa e
mostrando como ela é. Mas os outros homens ignoram o que fazem
depois de acordarem, como esquecem o que fazem dormindo (B1)
Que discurso é esse que não redime os homens da ignorância? Que
fazer com o advérbio aei (sempre)? Os homens sempre tardam ou o
discurso sempre é? Por que decidir o que Heráclito quer indeciso?
Conservemos sempre na indecisão; na indecisão sempre declara a
continuidade do acontecer e do permanecer aquém. Discurso? É o
universal ou é o de Heráclito? Provoquemos, atentos ao pensador, a
convergência de interpretações divergentes. Nosso discorrer se
resolve no estar aquém não só do Discurso, o Discurso dos
discursos, como também dos discursos em curso (o de Heráclito e o
de outros) antes e depois de os termos ouvido. O Discurso e os
discursos nos excedem como processo de organização. Na
impossibilidade e na obstinação de os alcançar, produzimos novos
discursos, que no excesso têm o destino dos primeiros, e
continuamos irremissivelmente imersos no acontecer da ignorância.
Tardos, acontecemos na ignorância e fazemos a ignorância
acontecer, o nosso inapelável caminho. Chegamos a estas reflexões,
derivando o adjetivo axynetos (tardo), de a-xyn-iemai (não ir com,
não acompanhar, ficar aquém da verdade, ouvir o apelo do
Discurso sem entendê-lo. O adjetivo verbal em -tos só existe em
derivados; axynetos é um que não se apressa, não deseja
empreender.) Como sempre, discurso é ambíguo, tanto pode ser o
Discurso dos discursos como pode designar um dos discursos, o de
Heráclito, por exemplo. Observe-se, entretanto, a diferença entre
um discurso e o Discurso. Um discurso e o Discurso não coincidem,
nem se repelem. O Discurso atravessa cada um dos discursos; neles
o vemos e o perdemos. Não acontecemos apenas nós, também as
coisas acontecem de acordo com o Discurso, acordo que não é
coincidência, acordo que vem de desacordos sem os quais nenhum
acordo se veria celebrado.
A inexperiência no Discurso não significa a falta de iniciação em
qualquer discurso. O apego indevido a discursos retarda o acesso
ao Discurso. Há discursos que prendem, fecham a passagem a
outros discursos. São assim os discursos míticos na vigência do
mito. Heráclito pensa, quem sabe, nos devotos aos mundos criados
por Homero e Hesíodo. Palavras (epea) são epopéias? Atos (erga)
são ritos através dos quais o homem procura passagem ao que o
excede? O discurso de Heráclito agride como exposição, propõe o
que outros discursos retêm. Se discursos têm a virtude de expor,
não lhes falta a tenebrosa qualidade de impor, contradição alojada
no bojo da exposição. Nenhum discurso retém a exposição sem
prejuízo. Heráclito ataca a crosta endurecida de discursos que,
negando-se como tais, tendem a absolutizar-se, evadidos do fluxo.
O pensador afronta as couraças para surpreender o que elas
encobrem. Faz-se obscuro para desencadear o que vive nas
sombras, a natureza que acontece e faz acontecer.
A forma verbal diegeumai ou diegeomai (persigo), derivada de
hegemon, chefe de tropas, tem ressonância militar. Isso não
surpreende num autor para quem o conflito é o pai de todas as
coisas. Adversário de Homero, Heráclito apresenta-se como
diegeta, narrador épico de uma campanha de que ele próprio é
protagonista. O exército que o acompanha terá que distinguir
(diaireon) em unidades forças conflitantes. Nessa empresa, todos
são inexperientes já que procedem de um mundo, o mítico, em que
se raciocinava diferentemente. Os que marcham avançam como
quem desperta. Heráclito se dispõe a dizer como as coisas são,
desfeito o véu da noite que as revestia. Os que o ouvem devem
contentar-se, entretanto, com uma exposição lenta, visto que o
expositor não apresenta como os aedos fatos concluídos. Heráclito
expõe as coisas à medida que as descobre. Mesmo assim não as dá
como prontas. Para acompanhar a exposição cada ouvinte terá que
rever o que lhe é mostrado. Os resultados da investigação de
homens que despertam só tocam a despertos. O método é
revolucionário: em lugar do passado, o presente, investigação em
lugar de cantos conclusivos, tarefa em andamento de que se ignora o
fim. Do canto e da dança vai-se à fala, ao andar atento; do dizer das
musas, ao Discurso - sem sujeito nem objeto - o de sempre, fonte
de todos os discursos.
Redimidos de narrativas míticas e de cerimônias rituais, palavras e
atos são cuidadosamente examinados. Ao contrário dos pensadores
preocupados em refletir sobre o fundamento, Heráclito se detém
naquilo que nos toca os ouvidos, os olhos, a língua, a pele. O
sentido encontra-se no que sentimos. Quem fala não enuncia as
regras que tornam o enunciado inteligível, entretanto, a gramática
está presente em cada partícula do que dizemos. A gramática é o
discurso. Como existem gramáticas regionais dentro da gramática
geral, há o Discurso e os discursos. O universo de Heráclito é vivo,
coisas meramente coisas não há. Todas as coisas e todas as
palavras são atos: atos de fala, atos do Discurso.
O discurso de Heráclito tem a vantagem de vencer as fronteiras do
discurso particular em direção ao Discurso que excede todos os
discursos e os apóia, Discurso oculto na natureza que oculta. Atento
ao discurso, tanto o já muitas vezes dito quanto o ainda não
proferido, Heráclito empreende o exame. O Discurso gera o que é e
o que se diz. Gerando, restaura o movimento daquilo que propendia
à rigidez letal.
Outros homens, não despertos como Heráclito, dormem no sono e
na vigília. Afundados no sono, escapam lhes as experiências
cotidianas e suas urgências. Não vivem adormecidos os que buscam
em agentes míticos explicação para os eventos? Acordados, agem
como se nada vissem. Com que motivo considerar desperto o
homem que cuida apenas dos seus interesses sem procurar
compreender o mundo como um todo, sem prestar atenção à
relação entre as inumeráveis experiências cotidianas. Não contentes
com palavras, os despertos perguntam pela gramática. A gramática
só se desvela a vigilantes. Só eles podem avaliar, julgar, dizer.
1.2 - O com-um e o comum
O conflito dos discursos deflagra vozes em convergente divergência.
Por isso convém seguir o com-um, pois o com-um é o geral. No
entanto, embora o Discurso seja com-um, vivem as multidões como
se tivessem conhecimento particular.(B 2)
Comum? Como havemos de entendê-lo? Se tivermos a ousadia de
desdobrar comum em com-um, cometeremos violência ao corpo da
linguagem, benéfica, entretanto, por desvendar o sentido. Com-um
recupera xyn-on: xyn [syn] (com), on (particípio presente do verbo
eimi -ser). Com-um: ser conjuntamente um. Onde? No Discurso.
O discurso desencadeia uma longa história, que se confunde com a
tradição ocidental desde as origens. Queremos recolher em
discurso o sentido do substantivo logos. Logos designa muitas
coisas. Homero emprega o verbo lego, da mesma raiz de logos,
para o processo de recolher alimentos, armas e ossos, para reunir
homens. Cada uma dessas operações implica comportamento
criterioso; não se reúnem armas, por exemplo, sem as distinguir de
outros objetos. Concomitantemente, logos significa uma reunião de
coisas sob determinado critério. Armas misturadas com ossos sem
critério algum não formariam logos, provocariam sentimento de
desordem, caos. Logos corresponde, portanto, ao com-um, não de
palavras apenas mas também de seres.
Logos não se restringe, entretanto, à ordenação dos seres, ele
estende vínculos, com o mesmo vigor, entre palavras. Surge assim o
discurso verbal. Sem logos não há discurso; há, quando muito,
amontoado caótico de palavras. Sem o discurso verbal, estaríamos
desamparados de recursos para nos referir ao Discurso. Embora o
Discurso ultrapasse em riqueza e significado o discurso verbal, não
se oferecem cursos à sua exploração senão este. O discurso verbal
abre-se em acesso e fecha-se em limite. Traduz o com-um sem
prendê-lo. Insere-se no com-um sem confundir-se com ele. Prender
o Discurso no tecido verbal esteve sempre na mira dos homens.
Ainda surpreendemos o logos no interior de nós mesmos, quando
compreensivamente voltados para o espetáculo do mundo. O logos
interior acrescenta-se aos outros dois no mesmo movimento de
com-unidade.
Seguir o com-um significa reprovar a dispersão, aderir à unidade,
recolher os estilhaços e ordená-los em um, não consentir na
dissolução.
Como distinguir conhecimento particular e discurso com-um?
Conhecimento traduz o substantivo phronesis, derivado de phren
(diafragma), e designa o conhecimento que se adquire através dos
sentidos, o saber prático. Heráclito não despreza a informação dos
sentidos. Veremos a insistência com que se refere a eles. Condena,
entretanto, aqueles - e constituem a maioria - que, não conseguindo
erguer-se acima dos sentidos, vegetam enredados no turbilhão
caótico das informações sensoriais. Como a impressão sensorial,
por ser única, é intransferível, cada um constrói o seu próprio
território de sensações.
Conhecimento particular (idian phronesin) tem o idiotes, o idiota em
sentido etimológico. Idiota é quem não sai de si. Age como se nada
lhe fosse dado, como se os outros só existissem para servi-lo, como
se viesse dele tudo o que ele é. O idiota consome. Consomem-se
objetos de consumo. O idiota também consome pessoas, mas só
depois de os ter transformado em objetos, seja na vida amorosa,
comercial, industrial ou política.
O idiota não reflete porque fez do mundo exterior uma coisa
submissa a seus desejos e, descoisificando-o, degrada-o a
sensações. Importa-lhe sentir, sentir muito, não importa o quê. Sem
mundo exterior, o idiota vive sem problema. Não progride nem
regride, ele já está no lugar em que sempre quis estar. Mesmo
acordado, o idiota dorme o sono dos justos. Bastam-lhe as trevas
interiores, que para ele são luz os sonhos imateriais, dóceis a suas
necessidades e desejos.
O conhecimento particular não é banal, é construído, auto-suficiente,
compacto. É o conhecimento do homem que compra e vende,
produz, dirige estados, cura, lida com o divino, ataca e defende com
a espada. O homem encerra-se em conhecimento particular, mesmo
que atinja posição de destaque, mesmo que seja visto e aplaudido,
mesmo que seja a origem de grandes feitos. O particular
circunscreve indivíduos e grupos. O homem deixa de ser idiota
quando sai de si e constata que há coisas que não dependem dele,
que há outros eus com direitos iguais aos dele, que ele não existe só,
que ele se faz com eles.
Tudo é problema para quem sai de si; há pedras no caminho.
Heráclito propõe o discurso como recurso para unir o que de outra
forma se dispersaria e para se comunicar com os demais. O
discurso tira da idiotice sem destruir os que concorrem. O discurso
é proferido em lugar comum a todos, o discurso constitui o lugar
comum, coloca um falante diante do outro sem hegemonia. O
discurso faz de todos um sem prejudicar nenhum.
Quem sai da idiotice entra no discurso. Pensar é viver no discurso:
dizer e escutar. O discurso reúne. Os que entram no discurso não
cogitam da utilidade. Rumo ao comum rompem-se fronteiros,
fraturas que tendem a se regenerar. O sono espreita os vigilantes.
Sem decisão de se manter desperto não há vigília.
Os sentidos se validam quando acolhidos no discurso com-um. Está
claro que o com-um não exclui o comum, o ordinário. O com-um é
supinamente ordinário, porque oferecido a todos. Se não o
percebemos, é por embotamento lógico. O discurso com-um acolhe
o discurso ordinário, muitas observações procedem do dia-a-dia.
No espaço comum todos convém.
Acompanhemos as implicações políticas do comum. A
cidade-estado, ao incentivar os homens a tomarem o destino em
suas prórpias mãos, dessacraliza. Nada do que pertence ao domínio
público deve ser regulado por um único indivíduo. Assuntos comuns
são tratados no debate, a guerra de palavras que gera o bem
comum. O discurso sustenta, congrega, une, critica, vigia, reina. O
discurso propõe o Discurso, base da democracia universal que
abriga todos os seres.
1.3 - Tradução
Poderíamos, ao traduzir Heráclito, manter logos em grifo,
declarando a indigência da nossa língua ante a riqueza dos recursos
verbais do povo que se aloja nas origens da cultura ocidental. Em
vez dessa opção melancólica, preferimos manter diálogo distante
com textos que a tradição nos legou e o fazemos, no caso vertente,
através de João Cabral de Melo Neto. Entendemos que as
definições de discurso ensaiadas pelo poeta em Rio sem discurso,
em parte já colhidas nas considerações precedentes, podem levar à
absorção de logos, fazendo-o fluir, transfigurado, na língua
portuguesa. Vamos ao poema de Cabral:
Quando um rio corta, corta-se de vez
O discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água quebra-se em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água eqüivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.
O discurso de um rio, seu discurso-rio.
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase a frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a sede ele combate.
Como se vê, o poeta ressemantiza um termo que o uso banalizou,
despertando os significados correr, fluir, contidos no substantivo
curso, que entra na composição de discurso. Iluminada a metáfora,
o discurso se faz curso de um rio, e ao correr/discorrer, as frases
refazem o fluxo cortado pelas palavras estagnadas nas definições
rijas do dicionário. O discurso-rio, ao reatar, reunir, recolher,
enfrasar, organizar, dispor, reativa alguns dos significados de logos.
Provocando a confluência do rio heraclitiano com o rio de João
Cabral, podemos abrir o diálogo com a língua antiga, solicitar novas
associações e dizer discurso sem a estranheza de sotaque
estrangeiro.
1.4 - Aos surdos
Há os presos ao sistema em que estão inseridos, estanques em água
paralítica, surdos. Por considerarem absoluto o discurso restrito, a
água cortada em poços, não atendem ao apelo com-mum, em que
seriam uma voz entre muitas. Paralisados no discurso privado,
perdem acesso ao que abrange tudo. Caraterizada está a falta de
entendimento:
Os desprovidos de (entendi) (movimento), ao escutarem, parecem
surdos; um ditado testemunha deles: os presentes estão ausentes.
(B34)
Queremos indicar com os parênteses os significados sobrepostos:
entendimento e movimento, presentes no adjetivo axynetos, já
analisado. A segunda acepção define a primeira. Desprovidos de
entendimento são os que não se põem em movimento com outros,
destinatários do mesmo apelo.
O apelo vem de fora do homem e dos sistemas. Os seres se
organizam em signos do Discurso que os compreende e os excede.
A sabedoria consiste no enfrasar sem prejuízo de peculiaridades. Só
então estamos na sentença-rio do Discurso único, que precisa de
muita água para que todos os poços se enfrasem.
Os surdos ao apelo não percebem outra voz além da que lhes é
familiar. Obstinados na recusa ao reatamento do próprio com o
alheio, perdem não só a inteligibilidade do todo como também se
lhes obscurece a luz privada que os alumia. O que têm por luz faz-se
escuridão. No intuito de manter vivo o pensamento, Heráclito ataca
as paralisias. O saber resulta dos que andam, atentos ao mesmo
apelo.
Espanta que Heráclito argumente com anexins, sentenças anônimas
mecanicamente repetidas para situações bem diversas. Quem
profere anexins não pensa, outros já pensaram por ele. Mas é a
surdos que Heráclito fala. Se discursos pensados não os abalam,
quem sabe palavras vulgares? De mais a mais, o Discurso está
presente em todos os discursos. Para entendê-lo, basta abrir os
ouvidos.
Porque o discurso em qualquer uma de suas acepções é ação, sem
movimento não entendimento. O sonho toca adormecidos. Para
entendê-lo é preciso despertar e refletir sobre ele. O entendimento
segue os passos do Discurso: reúne, estabelece relações; trabalho
de despertos.
1.5 - Comunidade
Presença física não estabelece comunidade. O discurso é o leito em
que discorrem apelo e resposta. Se os fios do discurso se cortam,
se em lugar do rio poços se isolam, sofre-se o flagelo da seca, a voz
emudece, a vida não resiste à morte. O apelo soa no interesse do
um, ata os fios que no conjunto formam a corrente do grande rio.
No Discurso, ausências enfrasadas fazem- se presenças efetivas.
Do Discurso com o qual assiduamente convivem, pois governa tudo,
deste se afastam, e as coisas com as quais se defrontam todos os
dias, estas lhes parecem estranhas (B 72)
De um lado está o Discurso. Ele atravessa (dioikounti) a casa que
habitamos. Reúne todas as casas. Não atravessa por atravessar,
mas atravessa para administrar, para arranjar, para pôr as coisas no
seu devido lugar. Produz arranjos semelhantes às palavras dispostas
na página escrita. Discurso é estrutura, é reunião.
O Discurso profere-se a si mesmo. Ainda que esquecido,
desprezado ou ignorado, o Discurso governa. Articulado em nós e
fora de nós, nele vivemos e convivemos. No andar, no atar e reatar,
ele se constrói. Como entender, desinformados de sua sintaxe?
Desinformados, onde buscar o sentido do que sentimos?
Resguardada fica a distância estratégica, essa que tomamos para
observar melhor. Mas a advertência vale para a dispersão, o recuo
sem retorno.
Os que convivemos com coisas, com partes do todo, estamos na
outra extremidade do Discurso. Coisas que nos deveriam ser
familiares fitam-nos com olhares estranhos quando desconhecemos
os elos que as vinculam. Comportamo- nos como pessoas que
passam os olhos numa página escrita em outra língua; embora
reconheçamos as letras, ignorantes das leis que as unem, escapa-nos
o sentido. Andamos, assim, como estrangeiros no mundo que é
nosso. Estamos no mundo e não estamos. Fechadas as portas da
casa de todos, encerramo-nos na nossa. Estrangeiros no mundo,
estranhamos os entes que nos cercam. Constatá-los na ponta dos
dedos, degustá-los, bailar ao ritmo dos sons, participar da festa das
cores não basta. Os que recusam o convite ao simpósio do Discurso
obstinam-se a viver em poços de água estanque.
Ora, o estranhamento é o princípio do saber . Quem tem olhos para
o estranho sabe. Só os adormecidos não estranham. A seus olhos
sonho e realidade não se distinguem, perceptíveis só aos atentos ao
Discurso.
1.6 - Discurso excedente
Perdemos a noção do Discurso com-um quando permitimos que o
saber se parta em poços. Não convém alicerçar hipotética unidade
em certo discurso acreditado, mesmo que seja o de Heráclito. O
discurso peculiar não leva ao todo. Tampouco atingimos o todo se
partimos o saber em saberes. O Discurso com-um excede os
falantes, recolhe-os na trama das relações. A trama é ele, as
palavras enfrasadas. Heráclito não é mais do que uma voz no
Discurso. Quem ouve só uma voz não percebe o coro.
Não ouvindo a mim mas o Discurso, sábio é o concurso: todas as
coisas
são um só. (B 50)
O golpe desferido por Zeus no andrógino primitivo mostra hoje sua
inteira gravidade. Vagamos castrados, incuravelmente enfermos.
Desamparados da unidade, instalamo-nos em precário e
inconveniente sucedâneo, a ideologia. Concordes no concorrer
estamos, se toleramos que o discurso de cada um soe no concurso
com-um. O Discurso com-um, na sua abrangência, é
contra-ideológico. Chama dos abrigos à praça, é de todos sem ser
de ninguém, está no lugar em que todos convêm. Heráclito brinca
com logos e homologein (homologar, concordar, convir).
Aproximando discurso e concurso, respondemos ao brinquedo.
Homologein não é repetir o já dito. Entre o discurso proferido e o
repetido abre-se a distância que vai do original à cópia. Discurso
nenhum reproduz o original. Ao homologar nos distanciamos,
concorremos.
A posição do não na testa da frase é enfática. Raras vezes um
discurso começa negando. Dos aforismos heraclitianos conhecidos,
esta é a única vez. O não estoura num contexto de afirmações. A
negação tira do falante a autoridade que o discurso lhe concedia.
Heráclito vive numa época em que discursos persuasivos ascendem.
A persuasão não é conduzida pela verdade. Há o falar do que
profere discursos e há o dizer do Discurso. O primeiro constrange à
visão peculiar, o segundo liberta para o conflito dos contrários.
Nada se ouve sem decisão de ouvir. Ficar atento a discursos
sedutores é cômodo. Perceber os movimentos do Discurso, que age
no silêncio, no espaço que se interpõe entre as palavras, que atua no
conflito, que reúne - requer energia de despertos. Sendo invisível,
ele se dirige aos ouvidos.
Ouvir o Discurso? Mas o que é que ele diz? Diz a ordem, o encaixe,
a aproximação, a harmonia das partes, diz que todas as coisas
costituem um só. O Discurso nos chama, com ele concorremos. Os
que ouvem organizam universos no lugar em que atuam: verbais,
políticos, familiares, profissionais... Sem o concurso dos que
concorrem até o mais belo dos mundos se dispersa como a palha.
Os ouvidos solicitados para o Discurso são os que recebiam
orientação das musas. Mais cômodo seria se houvesse um intérprete
do Discurso com autoridade sacerdotal. Mas então não haveria
concurso, haveria submissão a uma ordem imposta. O Discurso não
age assim porque preside ajustes e reajustes, movimento. Sem
atenção ao Discurso, fluxos estagnam, discursos definham, a chama
se apaga. Ativar o movimento é a tarefa dos que concorrem. Haverá
sempre erros de sintaxe, palavras desatualizadas, peças
desajustadas. O Discurso convoca concorrentes para tarefas
precisas.
1.7 - Esquivanças
Os que recordam O banquete de Platão sabem o quanto o buscado
se esquiva, o divino, o que na oferta se retrai. Evitemos, entretanto,
leitura platonizante. Heráclito não busca acesso a um outro mundo.
O seu campo de ação é exclusivamente este. O divino se oferece e
se retrai no tempo e no espaço em que vivemos e somos.
Das coisas divinas a maior parte, por falta de confiança, escapa ao
conhecimento. (B 86)
Ninguém ignora de todo. A mera informação dos sentidos, embora
precária, ainda é saber. Toca-se, degusta-se, cheira-se o divino.
Todo saber, contudo, está mesclado de não-saber. Se ignorássemos
inteiramente o que buscamos, como nos poríamos a caminho?
Os que amam o saber surpreendem-se infelizes muito antes de
Platão. O ardor dirigido ao que foge a todos agita-se na mescla do
desencorajamento e da esperança. A falta de confiança é evasão
sem vestígio. O filósofo é, porém, amante infeliz; para manter acesa
a chama do desejo, combate a sua própria desconfiança.
O Discurso com-um, o divino, é o que se busca. Enquanto estamos
a cominho, proferimos estes discursos parciais, necessários por
serem eles que nos mantêm em marcha; precários, porque o
não-dito supera em muito o que se diz. Os irremissivelmente
desesperados, por cansaço, decretam suficiente a parcela. Deles a
história apresenta notórios exemplos. Para curar-se da
desesperança afundam-se no desespero, declarando tudo o bem
pouco que têm.
1.8 - O indizível
Os discursos nunca são o Discurso. O nosso falar prossegue em
tentativas frustradas de aprisionar nas redes da sintaxe o que se
declara hostil a quaisquer confinamentos. Se lográssemos
surpreender o núcleo do indizível, proferiríamos a última palavra,
que decretaria o fim de todo falar. O saber é decididamente mais do
que o dito. O que nos discursos sábios seduz brilha como reflexo do
saber ausente. O oculto é muito mais do que o que se mostra.
De quantos ouvi discursos, ninguém chega a compreender que o
saber está separado de todos. (B 108)
Heráclito é ouvido e ouve. O propósito de quem ouve e de quem
fala é um só: o saber. Não saber é a declaração tácita ou declarada
dos que ouvem. Como escutaria Heráclito se já soubesse? Quem
sabe não ouve, diz. Não estando em quem ouve nem em quem diz,
o saber está separado de todos. Separado, separa. Sobre o
separado fala-se a separados. A fala ocorre entre inquietos, a fala
inquieta.
Assombra-nos quem nos ouve por proceder de carência. O
discurso transcorre da carência de quem diz à carência de quem
ouve. Quem ouve põe-se na rota do possível. Outrem surge
ouvindo. Quem ouve desperta a possíveis.
Quem ouve legitima o discurso. Por que falar se ninguém ouve? Não
houvesse boca que fala a ouvido atento, transições seriam
impensáveis. Entre os fragmentos de Heráclito é raro o emprego da
segunda pessoa. Outrem aparece no dizer, no ouvir, no fazer - no
fluir, na transição. Clarice Lispector: Entre o relógio, a máquina e o
silêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor de rosa e morta.
É ambição de muitos confundir o Discurso com-um com o dizer de
um. Se o irrealizável se realizasse, a busca seria assaltada pelo
ditado, o diálogo se renderia ao monólogo, a linguagem chegaria à
fixidez dos recursos que inventamos para nossa sobrevivência.
O saber separa-se por sua própria natureza, assegurando que não é
coisa entre coisas, nem coisa além das coisas. Não sendo coisa, ele
arma relações entre as coisas, indica a função das palavras na
sintaxe. É coesão, sentido não-substancial do que aparece. O saber
se recusa a nós, os falantes, para nos instituir como diferentes.
Excluídos, participamos e, nesse caráter, falamos. Procuramos
interpretar em nossas versões os enigmas de sua linguagem. O texto
original, refundido em outras versões, seduz como inatingível e assim
ilumina. Está presente, não estando. A declaração de fidelidade não
abafa a dissonante voz da traição. Separado de todos, o saber nos
torna solidários na carência. Apoiamo-nos mutuamente na busca.
Procuramos em outros horizontes o que não colhemos em nosso
território. Kekhorismenon (separado) deriva-se de khora (região,
território). Quem ouve sai do seu território em busca de outro. Ouvir
desterritorializa.
1.9 - Imbecis
Há os que amam o saber. Estes não se excitam. Submetem o
insólito a paciente exame. Habituados a afrontar certezas, o mundo
inteiro torna-se-lhes estranho, mesmo os rincões familiares.
Provocadores de mistérios, não poupam esforços para
desencantá-los ainda que o trabalho abra distâncias.
Os imbecis escolhem o extremo oposto. Vivem excitados por
sonhos, visões, contos, cantos, falas:
O imbecil ama excitar-se por qualquer discurso. (B 87)
A excitação não acontece aos imbecis inopinadamente. Por lhes
causar prazer, eles a buscam. Fontes de excitação: o timbre da voz,
a harmonia dos gestos, o brilho dos olhos, a agilidade da
argumentação, o ritmo das frases... Seduzidos, partem sem norte.
"Imbecil" não perde de todo a rudeza do adjetivo blax, que lembra o
som de um vaso que se rompe.
O homem ponderado se resguarda. Visto que o Discurso alimenta
os discursos, o compromisso de quem ama é com o Discurso. Os
desatentos ao apelo do Discurso são arrastados pelo torvelinho dos
encantos inconseqüentes.
1.10 - O discurso autoritário
Pitágoras, inventor de verdadeiros enganos. (B 81)
Pitágoras é apenas um nome de referência. Lembra os que ao falar
exercem poder sobre ouvintes submissos. Nas cidades que se
democratizam a palavra fulgura como uma arma, não raro, perigosa.
A retórica, inventada para persuadir, busca influir, mesmo com o
sacrifício dos fatos. Esse desvio não pode contar com a anuência de
Heráclito, empenhado em fazer da palavra um instrumento rigoroso
para desvendar os mistérios do universo. A advertência de Heráclito
não resguardou a multidão dos artifícios que aviltaram as
assembléias populares para a ruína de muitos estados. O livre
exercício da palavra não é tudo, requer-se ainda a integridade dos
que a usam. Se o discurso se eleva para abrilhantar o orador,
bloqueado está o caminho à verdade.
Político ou filosófico, engana o discurso que oferece pronto o objeto
da investigação. Aquém do Discurso, discurso algum é pleno.
Dando como concluído o que não passa de projeto, o falante
autoritário apresenta como meta o que não passa de ponte.
1.11 - O renome
Quem falaria de Priene ou de Teutames, não tivesse Bias nascido
nesse lugar e desse pai? O discurso distingue o lugar em que
emerge. Provoca acontecimentos ao acontecer:
Em Priene nasceu Bias, filho de Teutames, de mais pleno discurso
que o dos demais (B 39)
Bias comparece no discurso como sujeito e como objeto.
Comparado a outros discursos, o de Bias acena pleno. Pleno não
significa terminado. Pleno é o Discurso robusto e amplo, o que traz
à luz e se expande em associações que fluem e refluem em novas
vagas de sentido. O pleno se abre para o fluxo caudaloso do que
vem. Em Bias, o discurso, ao fluir, se faz história.
O discurso de Bias se opõe aos discursos que definham na
insistência de fórmulas. Inertes, não irrompem em articulações
fecundas. Destituídos de poder, deles se apoderam os que mandam.
Como lembrá-los, se optaram pelo partido dos sons que se
extinguem? Quem profere Discurso pleno desperta o falar
aprobatório de outros falantes. No fluxo e refluxo o nome se ilustra
em renome, nome autenticado no reflexo.
1.12 - Tradução e tradição
Este é o Discurso, a convergência de muitos cursos, a sobreposição
de correntes. Os cursos, ao discorrerem, se enredam e desenredam,
convergem e divergem no fluir que se refaz. Traduzir é manter viva a
tradição, é impedir que o rio se corte em poços, que estagne, que
morra. Atravessando a língua de João Cabral, Heráclito soa com
timbre novo sem esquecer o dialeto original. O discurso em curso
requer a tradução.
Visite o livro Heráclito e seu (dis)curso
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